Vários estudos mostram que os pacientes que superam a infecção estariam protegidos apesar de não terem anticorpos detectáveis
Seis meses após a chegada da pior pandemia do século XXI, persistem importantes dúvidas sobre o nível de proteção das pessoas que superaram a infecção por coronavírus. A maior parte da atenção nesse campo está focada na geração de anticorpos. Essas proteínas são uma das armas que o sistema imunológico usa para bloquear a entrada de vírus nas células do corpo. Mas os anticorpos são apenas uma das muitas maneiras pelas quais o sistema imunológico humano pode derrotar o vírus, e é possível que haja outras maneiras muito mais importantes de responder às perguntas que continuam a assombrar médicos e cientistas: superar a covid-19 nos torna imunes ao vírus? Por quanto tempo? Há pessoas que têm mais imunidade? E se houver dúvidas sobre a imunidade, como isso pode afetar as vacinas? Vários estudos publicados recentemente começam a oferecer respostas para essas perguntas.
Um deles envia uma mensagem preocupante. O trabalho analisou quase 40 pessoas que se apresentaram voluntariamente em um hospital chinês para atender à chamada das autoridades de saúde, que estavam procurando novas cadeias de contágio. Elas não tinham sintomas, mas os testes mostraram que estavam infectadas. Este estudo mostra que as pessoas que não apresentavam sintomas segregavam vírus potencialmente contagiosos por mais dias do que pacientes que adoeciam. O que é mais perturbador no trabalho, publicado na Nature Medicine, é que os níveis de anticorpos contra o vírus nesses pacientes eram mais baixos, caíam rapidamente com o tempo e, passados dois meses, eram indetectáveis. Se voltassem a entrar em contato com o vírus, não mais teriam anticorpos para bloqueá-lo.
“Este trabalho é o primeiro publicado e revisado por pares que mostra esse dado desalentador”, explica Marcos López Hoyos, presidente da Sociedade Espanhola de Imunologia. “É preciso confirmá-lo em séries mais amplas de pacientes e fazer um acompanhamento mais longo”, alerta.
Mas essa notícia não é tão ruim quanto parece. “Os estudos realizados até agora concentram-se em uma só parte da imunidade, a dependente de anticorpos”, lembra López, e há outra grande classe de imunidade que pode ser mais eficaz e da qual sabemos muito menos até agora: aquela que se baseia em vários tipos de células do sistema imunológico conhecidas como linfócitos. Entre todas elas há duas especialmente importantes: os linfócitos CD8 + capazes de matar as células infectadas e os CD4 +, essenciais para produzir novos anticorpos, caso o vírus retorne semanas ou meses após a superação da primeira infecção.
Um dos maiores e mais completos estudos sobre esse tópico oferece resultados muito encorajadores: 100% dos infectados desenvolvem uma resposta imune celular baseada em linfócitos. O trabalho ainda é preliminar, mas foi realizado por médicos do Hospital Universitário de Tübingen (Alemanha) com 180 pessoas infectadas e 185 saudáveis não expostas ao vírus. Esses resultados são complementares a trabalhos anteriores que mostraram que praticamente todos os contagiados desenvolvem anticorpos contra o vírus após uma infecção.
O mais interessante é que em parte dos infectados não foram detectados vestígios de anticorpos. Isto significa que, se eles tivessem feito um teste convencional, seriam contados como não infectados, mas, na realidade, são pessoas que passaram pela doença e também têm linfócitos de memória que devem protegê-las de novas infecções.
Um dos resultados mais interessantes do estudo alemão vem de pessoas não infectadas. Cerca de 80% tinham linfócitos de memória capazes de identificar o novo coronavírus SARS-CoV-2. Como é possível? Os cientistas acreditam que se trata de um caso de imunidade cruzada. Essas pessoas provavelmente foram infectadas com outros coronavírus humanos ―HCoV-229E, HCoV-NL63, HCoV-OC43― que só produzem sintomas de resfriados.
Esses coronavírus compartilham algumas proteínas com o temível SARS-CoV-2, de modo que os linfócitos da memória gerados contra coronavírus menos virulentos podem unir-se ao novo vírus. É algo que outro estudo recente também mostrou. Agora, a questão é se esses linfócitos são capazes de neutralizar o vírus. Se assim for, o novo coronavírus teria menos possibilidades de expansão entre a população.
“Essas pessoas não expostas ao vírus têm linfócitos CD4 que podem reconhecer vários antígenos do SARS-CoV-2, incluindo a proteína S [com a qual penetra nas células humanas], o que é muito importante para o desenvolvimento de uma vacina”. explica Sydney Ramírez, pesquisadora do Instituto de Imunologia La Joya (Califórnia) e coautora do estudo que identificou esse fenômeno pela primeira vez. Sua equipe agora está analisando se essa imunidade cruzada protege contra uma infecção por SARS-CoV-2, mas eles suspeitam que a proteção seja apenas parcial: não evitaria o contágio, mas talvez impediria os sintomas mais graves da covid-19.
Dois outros estudos feitos na Itália mostraram que não é preciso ter anticorpos para derrotar o vírus. Os dados são de pessoas com agammaglobulinemia, uma doença genética que as impede de produzir anticorpos. Diferentes estudos mostraram que vários infectados que sofriam dessa enfermidade superaram a covid-19 ―alguns mesmo sem sintomas graves―, o que provavelmente implica que eles geraram células imunes, possivelmente linfócitos capazes de localizar e matar as células infectadas, explica Ramírez.
Quando um vírus entra no corpo, é ativado um mecanismo no qual as moléculas de histocompatibilidade identificam diferentes fragmentos do patógeno ―antígenos― e as apresentam aos linfócitos. Centenas de antígenos diferentes podem ser gerados em cada infecção viral e para cada um haverá um linfócito que carregará esse retrato falado para identificar e destruir o vírus, no caso de encontrá-lo. E os linfócitos também têm memória; portanto, se o patógeno reaparecer semanas ou meses depois ―mesmo para a vida toda em algumas doenças― eles se lembrarão e poderão eliminá-lo.
O sistema nervoso e o sistema imunológico são os dois únicos que têm capacidade de memória, de lembrar de exposições anteriores a patógenos”, destaca África González, imunologista da Universidade de Vigo. O estudo alemão mostra que a resposta do sistema imunológico dos pacientes contra o novo vírus é muito variada. Os pacientes produziram muitos antígenos diferentes. Alguns identificam a proteína S com a qual o vírus se liga às células humanas para penetrá-las e sequestrar sua maquinaria biológica, outros identificam a membrana protetora que o recobre, outros se concentram em outras proteínas e juntos fazem um retrato completo do patógeno e um exército de células assassinas capazes de eliminá-lo. Essa resposta imune celular provavelmente ajuda a tornar a neutralização de patógenos completa e duradoura.
Esta última informação é muito importante para o desenvolvimento de vacinas, diz González. “A maioria das vacinas desenvolvidas está focada na resposta humoral, na produção de anticorpos neutralizantes que podem bloquear a entrada do vírus. Talvez uma vacina combinada, que potencialize ambos os ramos, celular e humoral, possa ser a mais eficaz”, ressalta.
Nesse sentido, algumas das vacinas mais avançadas, como a da Moderna, nos Estados Unidos, concentram-se em um único antígeno ―a proteína S―, por isso poderiam gerar uma resposta imune menos completa do que outras baseadas em vírus completos atenuados, como duas que a China está desenvolvendo ou, em uma fase mais inicial, a da Espanha.
*EL PAÍS