Enquanto os cientistas alertam que o risco de pegar covid-19 em ambientes fechados pode ser quase vinte vezes maior do que ao ar livre, as autoridades continuam a reduzir a capacidade de instalações fechadas e ambientes externos na mesma proporção, como se o perigo fosse o mesmo. Fecham parques, abrem bares. Esses exemplos servem para ilustrar o impacto de uma carta recém-publicada pela revista Science, na qual um grupo de cientistas e médicos explica a importância de serem tomadas medidas para combater os contágios transmitidos por via aérea. Ou seja, ajustar as máscaras e melhorar a ventilação para evitar que alguém respire e se infecte com as partículas contagiosas que se acumulam suspensas quando o ar não está fluindo. Além disso, e quase ao mesmo tempo, os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos EUA, atualizaram suas diretrizes para finalmente reconhecer o papel que o contágio pelo ar desempenha. No Brasil, 146.675 pessoas morreram e um total de 4.927.235 foram confirmadas com a covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados nesta segunda-feira.
“Há evidências esmagadoras de que a inalação de SARS-CoV-2 representa uma importante via de transmissão para a Covid-19”, escrevem os autores da carta, liderados por Kimberly Prather, da Universidade da Califórnia, em San Diego. Conforme explicado no artigo, as pessoas com Covid, e também aquelas que não apresentam sintomas, liberam milhares de aerossóis carregados de vírus, e também algumas gotículas ao respirar, tossir, falar ou cantar. “Portanto, é muito mais provável inalar aerossóis do que uma gota, por isso, a atenção deve estar focada na proteção contra a transmissão aérea”, afirmam.
Por isso, além das conhecidas obrigações de distanciamento, higiene e uso de máscaras, as autoridades sanitárias acrescentem novas orientações especificamente voltadas para evitar o risco desses aerossóis. “Instamos as autoridades de saúde pública a adicionar instruções claras sobre a importância de transferir as atividades para o ar livre, melhorar o ar de interiores por meio da ventilação e filtração e melhorar a proteção para trabalhadores de alto risco”, concluem eles em seu texto. É preciso imaginar que as outras pessoas expelem fumaça contagiosa pela boca, sugerem os especialistas em aerossol, porque é assim que essas partículas se comportam.
“Máscaras o tempo todo nos ambientes internos”
“Esse vírus é liberado em aerossóis que permanecem flutuando no ar, viajam mais de dois metros e podem se acumular no ar da sala”, resume Prather em um e-mail. E alerta: “As máscaras devem ser usadas em ambientes internos sempre que houver outras pessoas presentes; os aerossóis não param a dois metros”.
A verdade é que muitas autoridades incluem em suas recomendações a ideia de ventilar interiores. Mas, como o motivo não é explicado, pouco se cumpre, critica o especialista em aerossóis José Luis Jiménez, da Universidade do Colorado. Praticamente todos os órgãos fazem o alerta, mas na maioria dos casos não com a ênfase que este grupo de cientistas reivindica. Na semana passada, o diretor do Centro de Alertas e Emergências Sanitárias da Espanha, Fernando Simón, afirmou que não temos “evidências sólidas” de transmissão por aerossóis, embora tenha reconhecido que “estão aparecendo alguns estudos que parecem indicar esta linha”.
Na maioria, as diretrizes oficiais assumem a existência de três vias de contágio, embora não com a mesma importância. As gotículas que um paciente expele e vão parar na boca, olhos ou nariz de outra pessoa (daí a necessidade de distâncias e máscaras), o contato dessas mucosas com alguma superfície contaminada (ou fômites, daí a higiene das mãos) e a inalação de aerossóis.
Flutuando no ar a cinco metros
As evidências da existência desse modo de contágio pela respiração de partículas microscópicas aerotransportadas vêm crescendo em peso e em respaldo desde que em fevereiro alguns especialistas começaram a alertar para essa possibilidade. As evidências seguem em duas direções. De um lado, ao se localizar partículas contagiosas, com carga viral suficiente, flutuando no ar a quase cinco metros do doente. De outro, os numerosos casos de infecções em massa que se registam semana após semana e em que apenas os aerossóis podem explicar uma infecção tão massiva.
“As evidências do estudo dos surtos, sobretudo em massa, indicam que neles o contágio teve de ocorrer principalmente por transmissão aérea de aerossóis que persistiam em suspensão no ar e se distribuíam por toda uma área interna mal ventilada”, diz a virologista Margarita del Val, diretora do grupo Saúde Global, do CSIC de pesquisa sobre o coronavírus. Por exemplo, o coral de Skagit, onde um dos cantores infectou 52 pessoas em um único ensaio, algumas situadas vários metros atrás dele, em uma sala sem ventilação. Ou a aula de zumba na Coreia do Sul. Ou o restaurante de Guangzhou, no qual foram contaminados clientes que estavam a mais de quatro metros de distância do paciente zero, com quem dividiram uma sala sem ventilação externa por uma hora. Apesar de ser extremamente difícil saber em detalhes como uma pessoa foi infectada, existem circunstâncias que permitem descartar certas vias.
“Os casos de superpropagação só podem ser explicados por aerossóis: todos respiram o mesmo ar em uma sala fechada e com pouca ventilação”, diz Prather. E acrescenta: “O desafio com esse vírus é que muitas pessoas se movimentam já infectadas, sem saber que estão doentes; exalam aerossóis infecciosos simplesmente pela fala”. Del Val acredita que há menos evidências de surtos de transmissão por superfícies, ou por gotículas recebidas diretamente: “Admitir também a transmissão por aerossóis, sem esquecer que ambas as vias podem ser importantes no contágio, nos permite reagir a tempo e não atrasar a implementação de medidas que reduziriam os contágios em locais fechados”.
Mesmo assim, a Organização Mundial da Saúde (OMS) só reconheceu que essa via aérea poderia ter algum papel na pandemia depois que mais de duzentos cientistas publicaram uma carta aberta exigindo que seus dados fossem levados em consideração. Mas só a admite como uma possibilidade, embora suas diretrizes incentivem a melhorar a ventilação dos espaços. Os CDCs aumentaram a confusão após publicar em seu site durante dois dias a informação de que a inalação de aerossóis era a principal via de infecção, e então a apagou por completo, alegando que um rascunho havia sido publicado por engano. Precisamente nesta segunda-feira os CDCs voltaram a atualizar suas diretrizes, reconhecendo que, “sob certas condições, pessoas com Covid-19 parecem ter infectado outras que estavam a mais de dois metros de distância. Essas transmissões ocorreram em espaços fechados com ventilação inadequada. Às vezes, a pessoa infectada respirava com força, por exemplo, enquanto cantava ou se exercitava”. A Universidade Johns Hopkins, uma das mais prestigiadas em questões médicas, considera ser evidente o papel dos aerossóis e aponta a ventilação interna como um dos principais desafios desta fase da pandemia.
Parques fechados e bares abertos: “É o contrário”
Essa controvérsia tem efeitos reais, não é puramente técnica. O desconhecimento geral desta via de contágio significa que, por exemplo, pouco tenha sido aproveitada a possibilidade que o clima espanhol propiciava à transferência de atividades para áreas externas. Ou que se decida reduzir a capacidade para 50% tanto nos ambientes ao ar livre como nas áreas internas dos lugares, quando o risco de contágio é muito maior no interior, e ruas exclusivas para pedestres e parques sejam fechados. É o contrário”, critica Prather, “o exterior é melhor do que o interior, por causa da diluição”. “Os bares são a atividade de maior risco: falar alto, sem máscara, enquanto se bebe ou come, má ventilação, sentar um perto do outro… Tudo leva ao acúmulo de aerossóis”, explica a cientista.
A professora da Universidade da Califórnia dá como exemplo a cidade de Nova York, onde todos os bares e restaurantes fecharam, e os locais que servem comida acabam de ser reabertos com apenas 25% de ocupação. “Com a abertura de escolas e empresas é fundamental que tenham a orientação adequada para fazer isso com segurança”, observa. Del Val propõe outras medidas: “Ser mais rigorosos na recomendação de máscaras em todos os interiores, colocar em posição de renovação o ar aquecido em edifícios com sistemas de aquecimento central, em vez de recircular o ar, e estudar a possibilidade de equipá-los com filtros adequados ou processos de inativação de vírus, ou ainda recomendar ventilação regulada em vários intervalos”.
O que realmente é técnico é a origem dessa polêmica, segundo consideram os signatários desta carta da Science. Eles explicam que as gotinhas que são lançadas como projéteis e caem no chão antes de cruzar o limite de dois metros são maiores (100 mícrons) e mais escassas do que se pensava quando se estabeleceu a distinção entre gotículas e aerossóis (em 5 mícrons), muitas décadas atrás. “Os aerossóis se estendem até 100 mícrons, não a velha crença de 5 mícrons, estabelecida pela OMS”, explica Prather. Isso justifica grande parte das resistências, pois obrigaria a uma revisão de vários critérios em que muitos profissionais de saúde vêm sendo formados há décadas. Por isso, nessa controvérsia às vezes tem havido um choque entre especialistas em aerossóis, de disciplinas como a Física, e biossanitários com mais experiência em contágios, mas menos em como os fluidos se comportam no ar. A carta da Science é assinada por dois especialistas em aerossol, mas também por médicos, virologistas e especialistas em saúde pública.
FONTE: EL PAÍS.