Desde que surgiram nas primeiras civilizações, arte e cultura sempre mostraram-se propícias à manipulação. Prova disso veio na forma da censura, criando um longo histórico de poderes dominantes se apropriando desses dois campos. Quando países como a Itália anunciam, em 2021, o fim da censura a filmes dentro de seu território, essa discussão ganha novos capítulos.
A professora Maria Cristina Castilho Costa, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, conta que o processo de censura na sociedade não é novo: “A censura não é de jeito nenhum um recurso só usado em ditaduras. Ela sempre existiu na sociedade, desde que surgiu a cultura, porque a cultura é uma ordem, um sistema hegemônico, e as pessoas nem sempre se identificam com essa cultura hegemônica. Então, cria-se um conflito entre o que os cidadãos pensam e o que pensa a cultura hegemônica”.
No caso do Brasil, a censura ao cinema se instaurou logo quando a sétima arte se consagrava como meio de comunicação, no início do século 20. Enquanto isso, segmentos da sociedade, como o de educadores e da Igreja, se organizam em torno da preocupação com o poder de influência que poderia ter sobre os espectadores. Não é à toa que a censura começou a ser organizada pelo governo através do Ministério da Educação, passando depois para a pasta da Justiça na década de 1930.
“O que se observa depois é que esse sistema de censura continua. O Estado Novo (fase reconhecida como a mais autoritária do governo de Getúlio Vargas) acaba em 1945, você tem uma estrutura que é de uma certa forma montada, ele vai passar a se estruturar a partir de censuras também estaduais, e quando você tem o golpe de 1964, a censura passa a ser centralizada em Brasília”, relata o professor Eduardo Victorio Morettin, da Escola de Comunicações e Artes.
A censura e o controle às artes, então, relacionam-se diretamente com o comportamento das elites da sociedade, o que acaba tendo respaldo nas formas institucionais de poder. “Os fatores são ligados ao controle que uma parte dessa sociedade, que são as elites, quer ter sobre aquilo que a maior parte da população pode e deve consumir. É isso que se encontra na origem de qualquer movimento censório. Existe um padrão de cultura, de moral e de ordem política que é levado adiante pelo Estado e pelo governo”, afirma o professor Morettin.
Para além de momentos ditatoriais mais antigos no cenário político brasileiro, movimentos censores podem aparecer inclusive em períodos com maior liberdade democrática. Em 2020, R$ 500 milhões captados para projetos aprovados na Lei Federal de Incentivo à Cultura foram perdidos por problemas no prazo de assinatura do titular da pasta.
Vale lembrar que Roberto Alvim, ex-secretário especial de Cultura do governo Bolsonaro, chegou a fazer alusão a discursos nazistas, defendendo uma arte “heroica, nacional e de grande capacidade de envolvimento emocional”, além de “profundamente vinculada às aspirações urgentes do povo”.
O professor Morettin lembra também do esvaziamento de órgãos como a Cinemateca, instituição responsável pela preservação da produção audiovisual brasileira: “O problema que se coloca hoje do ponto de vista de uma censura é que, no fundo, ela está se construindo de uma outra maneira agora, por esse tipo de postura que não deixa de ser uma violência. Quando você tem uma Cinemateca fechada há mais de oito meses, você impede que o nosso acervo, a nossa memória seja preservada e que as pesquisas sejam feitas. Tudo que era financiado pela Ancine (órgão federal responsável por fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica nacional) era visto como propagador de um Brasil que eles não querem ver. O que você encontra no Brasil hoje é uma outra forma de censura, mas por estrangulamento das ações e das iniciativas culturais”.
De forma geral, o combate à censura na sociedade poderia se dar com o estímulo à ordem democrática e plural. A professora Maria Cristina aponta: “O melhor caminho é a educação. É começar na escola a incutir esses valores de pluralidade, diversidade, respeito e tolerância. Isso é uma prática que vai mostrando que a divergência não machuca, não dói, e que é só conversando que você pode ter a possibilidade de mudança de opinião, só assim”.
Fonte: Jornal da USP.