A faxineira de 37 anos indiciada por abandono de incapaz, na Barra da Tijuca. Foto: Reprodução
Mãe de dois filhos, um deles de quatro anos, a mulher de 37 anos, que abandonou seu bebê na porta de um hotel na Barra da Tijuca, em 13 de dezembro do ano passado, minutos após dar luz, se arrependeu. Ela chegou a ser levada para a 16ª DP (Barra da Tijuca), cujos investigadores conseguiram identificá-la ao analisar as câmeras de vigilância da região. Até hoje ela reafirma que não sabia estar grávida e, ao se ver sozinha, entrou em pânico. Ao perceber seu erro, a mãe requisitou a guarda do filho com o marido, concedida pela Justiça, após a criança ter passado quase dois meses num abrigo.
O que poucas mães sabem é haver uma solução melhor, que não seja o abandono, para mulheres que não querem o filho ou não tenham condições de mantê-lo. A entrega voluntária protegida de bebês à Justiça, de maneira anônima, veio como solução para preservar-lhes a vida. Sem as “rodas”, cilindros giratórios de madeira que rodavam tanto para fora quanto para o interior de uma instituição de caridade, nas quais mães depositavam, no passado, seus recém-nascidos, os abandonos se tornaram comuns. São crianças entregues à própria sorte em lixos, nos rios e nas portas de estabelecimentos comerciais.
No Rio, em 2022, segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dez bebês (122) foram entregues, por mês, de maneira legal, pela mãe ou pelo pai biológico à Vara da Infância, da Juventude e do Idoso — 22% a mais que no ano anterior (100). Tomando por base o Brasil, o número é bem maior: uma média de cinco crianças por dia. Foram 1.667 recém-nascidos entregues no ano passado, enquanto em 2021, 1.314.
A partir da inserção do artigo referente à entrega voluntária para a adoção, instituído pela Lei 13.509/2017, no Estatuto da Criança e da Adolescência (ECA), as mães podem comunicar à Justiça que não querem o bebê, ainda gestantes. A pessoa que decidir pela entrega será atendida por uma equipe multidisciplinar formada por psicólogas e assistentes sociais na Vara da Infância, Juventude e do Idoso. Se a mulher não tiver iniciado um pré-Natal, receberá as orientações para fazê-lo e se preparar para a entrega após o nascimento do bebê.
O processo envolvendo crianças e adolescentes tramita em segredo de justiça. Não há necessidade de a pessoa declarar o motivo da entrega da criança para adoção. Para dar mais tranquilidade à mãe na entrega de seu bebê, a partir de 2019, foi instituído o sigilo sobre o ato da mãe. No entanto, a criança tem direito a buscar sua origem biológica. Até porque, se no futuro, o bebê adotado apresentar problemas de saúde como, por exemplo, a necessidade de um transplante de medula, ele tem direito de saber se os pais ou algum irmão biológico pode ser compatível para a doação.
O juiz da 4ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, de Campo Grande, Sérgio Luiz Ribeiro de Souza, explica que o sigilo na entrega significa que a família de quem entregou o bebê não será procurada, quando a mãe assim desejar.
— É natural que busquemos manter a criança no seio familiar, mas se a mãe disser que não quer, temos que respeitar a vontade dela. Não podemos influenciar em sua decisão, apenas lhe explicar como ocorre a adoção legal e segura — comenta o magistrado.— Existem mentalidades totalmente equivocadas sobre o tema. Acham que entregar o bebê é um crime, que ela vai sofrer um julgamento moral. É justamente o oposto. A Justiça irá acolhê-la — esclarece.
Reintegração foi acompanhada pela Defensoria
No caso do bebê abandonado na Barra, reintegrado à família, o trabalho da Defensoria Pública foi essencial para dar todas as explicações aos pais biológicos. Casada há 14 anos, a mulher é mãe ainda de uma jovem de 18 anos e um menino de 4. O GLOBO localizou parentes da mulher que disseram que ela sofreu de depressão pós-parto. A família vive no alto do morro de uma favela da Zona Norte, num imóvel simples. Na sala há apenas um sofá e uma TV.
A mãe da criança é faxineira do Shopping Novo Leblon, vizinho ao local onde o bebê foi deixado. Para o titular da delegacia da Barra, Ângelo Lages, é pouco provável que a mulher não soubesse que esava grávida, porque colegas de trabalho da faxineira disseram que, antes do nascimento da criança, ela usava sempre casaco escondendo a barriga.
— É um caso muito delicado. Ela nos contou que teve o bebê no estacionamento do shopping, mas as câmeras não registraram esse momento — comentou o delegado, que disse que ela demonstrou arrependimento por abandonar o filho, já na delegacia.
Segundo Ângelo, a mãe responde pelo crime de abandono de incapaz e a Defensoria Pública do Rio vem lhe dando assistência jurídica. À Defensoria, a mãe da criança lamenta o que fez:
“Na hora eu não conseguia pensar. Não estava entendendo nada. Não sabia que estava grávida e fiquei imaginando o que meu marido iria pensar e como eu iria explicar uma história que nem eu mesma sabia ao certo qual era. Deixei ele ali para que fosse bem cuidado. Eu sou mãe e já era mãe quando ele nasceu. Eu nunca abandonaria um filho. Eu vivo meus dias arrependida pelo que fiz.”
Inicialmente, os investigadores suspeitavam de que o abandono ocorreu porque o bebê não seria filho do marido da faxineira. No entanto, um exame de DNA confirmou que ele é o pai da criança. A irmã da mãe da criança chegou a se habilitar para ficar com o menino, que ficou internado alguns dias na Maternidade Municipal Leila Diniz, na Barra da Tijuca, porque ele estava debilitado por nascer de sete meses. Depois, foi para um abrigo.
A mãe do bebê contou na Defensoria que chegou a perder uma filha, em 2017, na maternidade, que não chegou a citar o nome:
“A dor de ver um filho morto parece insuperável. Naquele momento, eu tive minha irmã ao meu lado. Ela sempre foi meu apoio na vida. Minha irmã foi à Vara da Infância e logo foi atendida para que a gente tentasse recuperar meu menino. Desse atendimento, a gente começou a recontar a nossa história “.
O pedido de guarda feito pela tia do menino foi feito no dia 22 de dezembro, na véspera do Natal, no Plantão Judiciário da Infância e Juventude da Capital. Para a defensora pública Letícia Kirchhoff, responsável pelo atendimento, é preciso ser rápido em casos sensíveis.
— Ajuizamos a ação de guarda pela tia materna, que impactada com a situação de seu sobrinho, só desejava que o bebê fosse reintegrado ao seu lar. Naquele momento, nós só esperávamos que a história tivesse um final feliz, com o bebê recebendo os cuidados afetivos que tanto precisa junto com a sua família — explica a defensora.
A coordenadora do Núcleo de DNA da Defensoria Pública do Rio, Andrea Cardoso, analisa que, depois do resultando do DNA, ficou claro que toda a família merecia acolhimento por causa do trauma. A decisão pela reintegração do bebê à família ocorreu em janeiro deste ano. A mãe do bebê disse à defensora sobre a importância de levá-lo para casa:
“Pegar o meu bebê nos braços e poder levá-lo para a casa, para a nossa casa, para a casa dele, foi uma das maiores emoções que já vivi. A culpa me ronda todos os dias mas, depois de tudo o que passei e de tudo o que fiz, conseguir cuidar do meu filho é o melhor recomeço que eu poderia querer”.
Casos de bebês estregues à adoção
Y. estava decidida a entregar o filho para adoção, mas não queria que ele pensasse que foi abandonado. Então, decidiu escrever uma carta de despedida para ele. A ideia era que a família que o adotou a entregasse para o garoto quando ele ganhasse maturidade. A mãe escreveu que não teve escolha e não teria como lhe dar um futuro promissor, por isso, achou que a adoção seria melhor. Contou ainda que tinha certeza que a família o amaria tanto quanto ela o amou quando ele estava na barriga dela. E conclui: ‘Foi um ato de amor, não de abandono’.
Ao tomar conhecimento de que havia engravidado do namorado, a atendente X., então com 20 anos, se desesperou. Tinha acabado de vir do Ceará para o Rio, sozinha, tentar a sorte na capital fluminense. Ela conta que só pensava numa forma de entregar o bebê para que alguém cuidasse, só não sabia como:
— Eu não tinha como cuidar. O pai sumia por meses, não queria assumir compromisso e bebia muito. Não via futuro, por isso não queria ficar com a criança. Mas não tinha ideia como poderia entregá-la para alguém de confiança e não ser presa — relembra ela.
Ao pesquisar pela internet, a atendente descobriu que poderia entregar a criança para adoção em alguma Vara da Infância, Juventude e do Idoso, onde recebeu as informações de como deveria agir na hora de ter o bebê e fazer a entrega. Já no Hospital Maternidade Municipal Maria Amélia Buarque de Hollanda, no Centro do Rio, recebeu a orientação de que não deveria criar vínculos com a criança, uma vez que estava certa da decisão que havia tomado:
— Quando vi o rosto daquela criaturinha que saiu de dentro de mim, eu não sei o que me deu. Cortei o cordão umbilical, fiquei com ela nos meus braços e a amamentei. A enfermeira disse que iria retirá-la do quarto. Eu falei: ‘Não, ela é minha!’. Desisti de entregá-la para adoção. Não me arrependo. Hoje trabalho e ela fica na creche durante o dia — conta X. — Mas acho que as pessoas abandonam os filhos por falta de informação. Tem jeito, basta entregar para quem pode cuidar de maneira segura — aconselha.
Tempo para se arrepender
A juíza da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, em Madureira, Mônica Labuto, conta que as desistências acontecem com frequência. Por isso, no dia da audiência, ela costuma marcar um atendimento com a psicóloga duas horas antes, justamente para trazer segurança à escolha. E, a partir dessa decisão pela entrega do bebê perante o Juízo, há ainda 10 dias para a pessoa manifestar arrependimento. Nesse ínterim, a criança já está num abrigo ou na casa de uma família acolhedora. Depois do prazo de desistência, a mãe não poderá mais retroceder, porque outra família do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, já está se preparando para receber o recém-nascido.
— Durante a audiência, a mãe não pode ficar sem advogado ou defensor público. Quando a mãe desiste, monitoramos a família por 180 dias, para evitar o atravessamento do bebê, ou seja, que a criança seja entregue a terceiros em troca de algum tipo de vantagem ou mesmo porque acha que ficaria melhor com algum conhecido — explica a magistrada.
No início do ano, o CNJ uniformizou os procedimentos para entrega protegida de bebês para adoção, por meio de uma resolução. Além de estabelecer que os tribunais de justiça dos estados tenham uma equipe multidisciplinar para os atendimentos, é necessário que a adoção ocorra de forma humanizada e sem causar constrangimentos às mulheres. Para isso, os direitos fundamentais tanto de mães quanto dos recém-nascidos precisam ser garantidos, para evitar situações de abandono com risco de morte das crianças, abortos clandestinos e entregas ilegais.
A juíza Mônica Labuto revela que, geralmente, a mãe não tem condições financeiras para manter a criança, embora haja também história de mulheres com boa situação econômica.
— Tive um contato de uma profissional de uma maternidade particular que fez contato conosco. O recém-nascido foi entregue para adoção. Também há casos de estupro, de violência doméstica de ex-marido, ex-namorado e até marido mesmo — declara a magistrada.
Segundo a juíza, há muitos mitos entorno da questão da adoção. Ela conta que as pessoas não querem abortar, como muitos imaginam, por medo dos riscos. Outra tese que tenta desmistificar é a de que todos “os abrigos são os piores locais do mundo”. Labuto ressalta que, tanto abrigos credenciados como famílias acolhedoras — que recebem um valor mensal para cuidar das crianças—, são fiscalizados pela Justiça.
— O processo de adoção é muito seguro. O sigilo é garantido. Façam a entrega legal. A nossa equipe multidisciplinar da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso não entrega para estranhos, nem para os amigos dos amigos — recomenda a magistrada.
O psicólogo Lindomar Darós, da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de São Gonçalo, há 23 anos atuando na área, lembra de um caso de estupro numa festa. A jovem só percebeu meses depois.
— Ela ainda foi positivada com HIV. O bebê teve todo o acompanhamento e não foi infectado. Ele foi para adoção, embora a avó biológica fosse contra. O direito de escolha é da mãe — reforça ele.
A colega de Darós na mesma vara, a assistente social Rafaela Marron, explica que a escolha das mulheres é influenciada pela sociedade que acha que a mulher tem o dever da maternidade, mesmo indesejada.
Fonte: Extra.