Escola Municipal Josué de Castro fechada na Vila do João, no Complexo da Maré — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
A pequena Lara, de 6 anos, estava animada com a festa do Dia das Crianças programada para ontem na Escola municipal Marielle Franco, na favela Salsa e Merengue. Por conta da segunda etapa da Operação Maré, que mobilizou mil agentes das polícias Civil e Militar, o colégio não abriu as portas, como já tinha acontecido na véspera. Balanços das secretarias municipais de Educação e Saúde mostram a escalada de prejuízos para estudantes e pacientes provocados por ações policiais e confrontos entre facções nas favelas da cidade. O número de vezes que unidades de ensino da prefeitura precisaram fechar por violência, até 2 de outubro deste ano, já superou o de 2022. No caso dos espaços para atendimento médico municipais em comunidades as ocorrências de fechamento são quase o dobro do ano passado.
— Queremos um futuro melhor para os nossos filhos. Não sabemos como será a reposição das aulas. Minha filha está numa escola que tem aulas de inglês. Estudar dentro da comunidade numa escola bilíngue enriquece o universo do conhecimento para o aluno. Mas por conta dessa violência acaba atrapalhando — lamenta Mônica Maria da Silva Cândido, mãe de Lara. — No início do ano, minha filha ficou horas sem poder sair do colégio por causa de operação. Tive que conversar muito para convencer a Lara a voltar.
Alerta desde 4h da manhã
Segundo a Secretaria municipal de Educação, este ano, até 2 de outubro, 500 escolas suspenderam as aulas pelo menos uma vez por causa de tiroteios. No total, foram 2.259 fechamentos e 176 mil alunos afetados. No ano passado, 405 unidades interromperam as atividades uma ou mais vezes, somando 2.128 ocorrências e 160 mil estudantes atingidos.
Ao classificar como tragédia um único dia sem aula, o secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha, afirma que a situação do Rio faz com que diariamente, a partir das 4h, a Gerência de Segurança Escolar da pasta já esteja em ação, recolhendo informações de fontes como Centro de Operações Rio (COR) para analisar intercorrências que possam afetar as escolas. Por um aplicativo, o Escola Segura, direções das unidades também podem alertar sobre as interferências, muitas vezes avisadas pelos próprios responsáveis pelos alunos, que usam meios como o WhatsApp.
— Muitas vezes, em casos de guerras de facção, por esses canais a gente descobre que há um confronto antes mesmo de sermos avisados por uma força oficial — diz Ferreirinha. — Eu faço um clamor que a educação seja priorizada e que a escola, seja entendida como um lugar neutro, não afetado pela fuga de bandidos, por operações policiais ou pelo fogo cruzado.
Tal situação acontece, e vem se intensificando, a despeito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como a “ADPF das Favelas”, que restringe operações em comunidades. E não poupa colégios privados.
— Vamos levando como dá. Vida de favelado não é fácil — lamenta Jeniffer Carneiro, mãe de uma menina de 9 anos que estuda em escola particular no Parque União, também no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, e perdeu mais de dez dias de aula este ano.
A educadora Andrea Ramal ressalta que a interrupção no processo de ensino prejudica o ritmo de estudo e desmotiva o aluno, desviando o foco de suas atividades educacionais:
— Não é possível se concentrar nas explicações do professor, nas leituras e exercícios, se o aluno está com medo, inseguro, estressado e desconcentrado, estado provocado pela situação de violência no entorno das escolas.
Este ano, no sistema de Saúde do município, houve 639 fechamentos totais de unidades até agora. Em 2022, foram 368. Acrescentados as interrupções parciais das clínicas e os atendimentos em residências que deixaram de ser feitos, as ocorrências saltaram de 1.301, ano passado, para 2.402 em 2023.
— Este ano, uma paciente morreu baleada em frente à Clínica da Família Edma Valadão, em Acari. Isso desestabiliza todo mundo. Além das horas de não trabalho, a situação nos leva a ter mais dificuldade de lotação de profissionais nesses territórios. A taxa de rotatividade, o chamado turnover, é quatro vezes maior nas áreas com maior incidência da violência urbana do que no restante da cidade — afirma o secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz.
No segundo dia de operação das polícias Militar e Civil na Maré, segundo Soranz, 13 unidades de saúde fecharam, e 13 atendimentos em residências não aconteceram. Dois colégios estaduais, onde estudam 800 alunos, suspenderam as aulas. Já na rede municipal, 41 escolas fecharam, afetando 13.946 estudantes.
— O impacto foi praticamente coletivo nesses dois dias. Das 16 favelas da Maré, só três (Piscinão de Ramos, Marcílio Dias, e Roquete Pinto) não sofreram os impactos da operação — afirma Maykon Sardinha, coordenador da área de segurança da ONG Redes da Maré.
Área de treinamento
A Operação Maré atuou ontem em oito pontos do complexo — em um deles, a Vila do João, o governo do estado informou que “foi devolvida à comunidade” a área de lazer usada para treinamento por traficantes. No entanto, desde agosto, uma emenda ao orçamento da União, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), foi liberada para custear um projeto esportivo no local. O espaço já tem, inclusive, um banner anunciado “atividades gratuitas”, em parceria do Instituto Realizando o Futuro e do Ministério do Esporte.
O convênio entre a ONG responsável pelo projeto e o Ministério do Esporte foi assinado em agosto. Sóstenes disse ao GLOBO que não sabia da utilização por criminosos no ano passado. Após as imagens serem divulgadas pelo “Fantástico”, da TV Globo, os governos federal e estadual anunciaram parceria envolvendo homens da Força Nacional e a integração das inteligências. No início deste ano, a associação de moradores já havia oferecido o espaço para o projeto Ellos Esporte, em parceria com o Realizando o Futuro e o Ministério do Esporte. As atividades devem iniciar na próxima semana.
Como o espaço tinha sido reformado, o único reparo feito pelo projeto, segundo o coordenador Gustavo Dutra, foi a pintura do portão. O material de exercícios, pranchas e outros objetos foram doados. O Ministério do Esporte não se pronunciou.
O coordenador da Core, da Polícia Civil, Fabrício Oliveira, considerou a ação de ontem “bem-sucedida”, mesmo que, diante de 54 mandados prisão, só duas pessoas tenham sido presas. Para ele, a recuperação de 65 carros, a apreensão de drogas e a remoção de barricadas foram importantes.
Fonte: EXTRA