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Livro mostra como a PM facilitou a expansão da milícia no Rio

Milicianos fortemente armados e usando roupas pretas e balaclavas agiam na Zona Oeste sem serem incomodados pela polícia nas invasões de comunidades. Policiais militares forneceram armas — Foto: Reprodução

Em 2017, a milícia invadiu Itaguaí, na Baixada Fluminense. Numa série de operações coordenadas que perduraram por meses, paramilitares vestidos de preto, com balaclavas e armados com fuzis, saíam de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, e atacavam simultaneamente várias favelas do município que eram dominadas pelo tráfico. Em menos de um ano, o grupo tornou-se hegemônico — e, para isso, teve ajuda providencial. “Era a PM que dava força à milícia”, resumiu, num depoimento ao Ministério Público do Rio, André Vitor de Souza Corrêa, o Dufaz. Segundo o ex-miliciano — que rompeu com a quadrilha, resolveu se entregar e contar o que sabia na esperança de fechar um acordo com a Justiça —, antes dos ataques dos paramilitares, policiais militares do batalhão da cidade, o 24º BPM, entravam nas comunidades fardados e com viaturas, “para espantar os caras”. A milícia, então, ocupava a favela sem resistência.

O depoimento de Dufaz, que expõe as entranhas da relação de parceria entre as forças de segurança e a milícia, é apenas um dos reproduzidos no livro-reportagem “Milicianos: Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele” (Objetiva, 2023), que vai ser lançado hoje, às 19h, em Botafogo. A obra, resultado do trabalho de apuração de mais de um ano em mais de dez mil páginas de processos judiciais e documentos obtidos por meio de fontes ou via Lei de Acesso à Informação, além de entrevistas com dezenas de fontes, destrincha a história das milícias fluminenses e mostra como agentes de segurança tiveram participação determinante na expansão dos grupos paramilitares pelo estado na última década.

Venda de armas

Em seu relato, o ex-miliciano também contou que, quando ainda integrava a quadrilha, circulava pela cidade armado e usando a farda da PM, mesmo não sendo policial. Nessas rondas, quando passava por blitzes do batalhão, os agentes “o deixavam seguir viagem normalmente, inclusive costumava lanchar com os policiais militares, apertavam as mãos e batiam papo”.

De acordo com Dufaz, os PMs ainda vendiam para a milícia armas apreendidas em operações contra o tráfico e entregavam rivais que haviam sido detidos para que fossem executados pelos paramilitares. Um mês depois de depor à Justiça, Dufaz foi encontrado morto no porta-malas de um carro em Itaguaí. Seu depoimento, entretanto, foi decisivo na condenação de 26 integrantes da milícia em maio de 2020.

“Milicianos” também mostra outros ataques criminosos que tiveram a cobertura de policiais. Em julho de 2018, por exemplo, quatro agentes fardados foram fotografados por moradores lado a lado com um grupo de paramilitares encapuzados e armados com fuzis que tentava tomar a comunidade do Rola, em Santa Cruz.

A imagem viralizou nas redes sociais e passou a ser alvo de uma investigação interna da PM, que concluiu que os agentes “permitiram que milicianos saíssem da comunidade, após confronto armado com traficantes, sem que fossem incomodados e, ainda, se deixaram fotografar junto aos mesmos”.

As invasões de Itaguaí e da favela do Rola fizeram parte de um plano expansionista da maior milícia do Rio colocado em prática, a partir de 2017, pelo então chefe do bando, Wellington da Silva Braga, o Ecko. Antes restrito à Zona Oeste, o grupo — fundado por policiais na virada dos anos 2000 e tomado por ex-traficantes, como Ecko, em 2014 — se espalhou por 20 bairros da capital e outros seis municípios da Baixada Fluminense e da Costa Verde. E assim passou a ser considerado por pesquisadores e investigadores a maior organização criminosa em atuação no Rio. A morte de Ecko numa operação policial em 2021 desencadeou uma guerra pela liderança do bando, que dura até hoje.

‘Pacificação artificial’

O livro mostra que até parte da munição usada pela milícia para tirar desafetos do caminho e invadir favelas é desviada dos paióis de batalhões da PM. Em 3 de março de 2018, a Polícia Civil apreendeu, dentro da casa onde foi preso Leandro de Oliveira Silva, o Teco, um dos “soldados” da milícia de Santa Cruz, dois fuzis, uma pistola e 119 cartuchos. Peritos da corporação conseguiram, a partir dos números de série, rastrear a origem de parte da munição: 37 projéteis — para fuzis e pistolas — faziam parte de lotes comprados pela PM com dinheiro pago pela população.

Em outra mensagem, Francisco Anderson Costa, o Garça, explica a um comparsa como o grupo usa o dinheiro obtido com a extorsão de moradores e comerciantes para direcionar o posicionamento das blitzes feitas pelo batalhão de Santa Cruz: “além de pagar ao GAT (Grupamento de Ações Táticas), vou dar uma bonificação para fazer blitz em pontos estratégicos”. Num terceiro diálogo, Garça chega a pedir a outro oficial do 27º BPM, o capitão Pedro Augusto Nunes Barbosa, para que uma viatura saísse “da entrada de Manguariba”, localidade de Santa Cruz acessada pela Avenida Brasil. Barbosa respondeu que, depois das 22h, os agentes não estariam mais no local.

Apesar dos indícios de participação da polícia na expansão da milícia, agentes que trabalhavam nos batalhões da região durante esse período foram premiados por “combater o crime”. O caso de Santa Cruz é emblemático. Após invadir as favelas do Rola e Antares, a milícia passou a dominar todo o bairro, explorando moradores, comerciantes e empresários, e promovendo uma “pacificação” artificial à base de ameaças, extorsões e desaparecimentos de quem ousava denunciar o bando.

Porém, na fria realidade dos números, os homicídios caíram quase à metade, de 2018 para 2019: passaram de 99 para 48 casos com o monopólio da milícia e o fim da disputa com o tráfico. E, mesmo que essa queda estivesse diretamente relacionada com o avanço dos paramilitares, o 27º BPM, batalhão do bairro, recebeu seguidos prêmios — e seus agentes, bonificações salariais — do governo do estado por bater metas de redução de indicadores criminais.

Fonte: EXTRA

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