Segundo Arthur Guerra, psiquiatra e presidente do Cisa, “ao observar as estatísticas de óbitos atribuídos ao uso de álcool no país, fica evidente que os efeitos nocivos dessa substância não são iguais para brancos, negros e pardos, com uma disparidade particularmente acentuada entre as mulheres”.
O estudo, inédito, revela que, em 2022, a taxa de mortalidade totalmente atribuível ao álcool foi de 10,4 por 100 mil habitantes entre a população negra, enquanto entre os brancos essa taxa foi de 7,9, mostrando uma diferença de aproximadamente 30%. Entre as mulheres, a desigualdade é ainda mais marcante: a taxa de óbitos entre mulheres pretas e pardas foi de 2,2 e 3,2, respectivamente, contra 1,4 entre as brancas.
Um dos fatores que contribuem para essa disparidade é a desigualdade racial histórica no país, especialmente no que diz respeito ao acesso a tratamentos. “Pessoas negras enfrentam maior vulnerabilidade social por diversos motivos, principalmente o racismo e a pobreza, que dificultam o acesso a uma vida digna e, consequentemente, ao tratamento adequado para problemas relacionados ao uso de álcool”, afirma Mariana Thibes, doutora em sociologia e coordenadora do Cisa.
Pesquisas internacionais apontam a discriminação racial como um estressor potencial, contribuindo para o surgimento de problemas físicos e emocionais, além de comportamentos de risco associados ao consumo de álcool. No entanto, é importante ressaltar que isso não significa que a população negra consuma mais álcool de forma abusiva, mas sim que, quando enfrentam o problema, suas chances de obter um tratamento adequado são menores.
No caso das mulheres negras, outro dado preocupante é que 72% dos óbitos relacionados a transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool ocorrem entre mulheres pretas e pardas. “As dificuldades adicionais que a população feminina negra enfrenta em diversos aspectos da vida podem levar ao uso excessivo de álcool. Além disso, o estigma associado ao alcoolismo e a falta de tratamento adequado podem agravar ainda mais a situação, gerando outros problemas sociais e de saúde”, avalia Mariana.
Diante desse panorama, é crucial aumentar a conscientização sobre os riscos do abuso de álcool e seus impactos na saúde da população preta e parda, além de promover a inclusão e diversidade nos serviços de saúde mental para garantir que todos tenham acesso a cuidados de qualidade de forma igualitária.
Em relação aos óbitos relacionados ao álcool, a pandemia interrompeu a tendência de queda. Em 2022, a taxa de mortalidade associada ao álcool foi de 33 por 100 mil habitantes, ainda abaixo dos 36,7 registrados em 2010.
Dezesseis estados brasileiros apresentam uma taxa de mortalidade atribuível ao álcool superior à média nacional, com Paraná (42,0), Espírito Santo (39,4) e Piauí (38,9) liderando o ranking. Idade
Os impactos negativos do álcool variam conforme a faixa etária. Entre jovens adultos, os principais riscos estão relacionados a comportamentos perigosos, como acidentes de trânsito e violência, enquanto nas faixas etárias mais avançadas, as consequências são mais associadas a doenças crônicas não transmissíveis, como as cardiovasculares.
Outro aspecto abordado pelo Cisa é a resistência da população, negra ou branca, em aceitar tratamento, o que se torna uma das maiores barreiras à cura. O centro ressalta que existem estigmas relacionados ao alcoolismo que dificultam a busca por ajuda.
“O alcoolismo ainda é percebido por muitos como uma fraqueza de caráter ou um problema moral, o que faz com que muitas pessoas demorem a reconhecer o problema e buscar tratamento. É fundamental lembrar que o alcoolismo é uma doença crônica que, quando tratada, pode ter um bom prognóstico.”
Existe também o estigma histórico no Brasil de que a população negra consome mais álcool e de forma mais abusiva, o que não é verdade. Esse estigma contribui para que essas pessoas evitem procurar ajuda quando necessário. Além disso, quando esse preconceito racial é somado ao estigma do alcoolismo, a situação se torna ainda mais complexa. É importante ressaltar que negros no Brasil não consomem mais álcool do que brancos, conforme demonstrado pela pesquisa Covitel 2023. No entanto, quando enfrentam problemas relacionados ao uso nocivo de álcool, têm menos acesso a tratamento de qualidade, o que leva a um maior número de mortes associadas ao consumo.
Os serviços de saúde devem estar atentos a essa questão, pois desempenham um papel central na abordagem do problema. A ampliação do acesso a tratamentos gratuitos de qualidade e culturalmente sensíveis é essencial para enfrentar essa situação.
Questionado sobre as recaídas no tratamento do alcoolismo, o Cisa informou que não possui dados específicos, mas reconhece que recaídas fazem parte do processo de tratamento para pessoas de todas as raças. “As recaídas, quando encaradas de forma construtiva, ajudam o paciente a retomar a motivação para continuar o tratamento. O apoio familiar e dos profissionais de saúde é crucial nesses momentos, ajudando o paciente a entender as causas e os gatilhos que levaram à recaída.”
A análise dos óbitos relacionados ao álcool por raça/cor da pele foi realizada com base em dados populacionais sobre consumo de álcool e mortalidade, aplicando-se as Frações Atribuíveis ao Álcool para os agravos específicos à saúde. As fontes oficiais consultadas incluem o IBGE, Datasus e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Cisa
O Centro de Informações sobre Saúde e Álcool é uma referência no Brasil no tema, e desde sua fundação em 2004, contribui para a conscientização, prevenção e redução do uso nocivo de álcool. Reconhecido como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), o Cisa dedica-se ao avanço do conhecimento na área, promovendo a divulgação de pesquisas e dados científicos de forma acessível, produzindo materiais educativos e desenvolvendo diversos outros projetos.